Como omissão ou conivência de um Estado contribuiu para surrupiarem mais de R$ 300 milhões dos cofres públicos para contratos de transporte escolar que sequer esclarecem, nos próprios pregões, quantos quilômetros são rodados e quantos alunos são atendidos

“Continuo estudando porque minha família me ajuda a pagar o transporte. Vou de Coopertalse. São R$ 4 reais para ir, e mais R$4 reais para voltar. Tem dias que não tenho dinheiro aí não posso ir à escola. Porque meu colégio, o colégio estadual Cleonice Soares da Fonseca, fica em Boquim, e eu moro na zona rural, em um povoado Mata Grande, também Boquim. São R$ 8 reais. Pode ser pouco para quem tem dinheiro, mas isso é muito para quem não possui recursos como nós. Tenho colegas que já deixaram a escola porque não conseguem transporte. Nós tínhamos os ônibus antes, mas agora este serviço não está mais disponível para nós, alunos do tempo integral. Ano passado todo eu paguei transporte. E quem não pode pagar, faz o quê”? As palavras acima são da estudante Thaíssa Santos, uma garota de 15 anos.

Enquanto a estudante passou o ano todo pagando pelo que deveria ser um direito, os trabalhos da Polícia Federal (PF), nos últimos meses de 2018, começaram a desbaratar uma verdadeira máfia do transporte escolar, que atua em Sergipe faz coisa de 20 anos. Os números da PF revelaram, na Operação Marcha Ré, irregularidades e malversação do erário em aproximadamente R$ 300 milhões. Nesta confusão toda, empresas como a Vitória Transportes Ltda, de propriedade da família da conselheira Susana Azevedo, e também a Via Norte Transporte, estão sob suspeição.

O que impressiona, porém, é que o estado escondeu as informações – referentes ao transporte escolar – até da Controladoria-Geral da União. Quando este deveria ser o primeiro a solicitar uma investigação esmiuçada, a cobrar das empresas, a querer solucionar a problemática. O que fica claro, então, é que a ingerência de um Estado contribuiu para surrupiarem mais de R$ 300 milhões dos cofres públicos para contratos de transporte escolar que sequer esclarecem, nos próprios pregões, quantos quilômetros são rodados e quantos alunos são atendidos.

Durante todos estes anos, além de pais e alunos que necessitam do serviço adequado, quem mais cobrou um transporte escolar de qualidade foi o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica do Estado de Sergipe – Sintese. Acerca deste assunto, o sindicato enviou aos órgãos fiscalizatórios e também à Seed, ao todo, aproximadamente 40 mil ofícios. “O Mec obriga a ter um conselho para apreciar a prestação de contas do transporte escolar. Mas a Seed cria dificuldades e não dá respostas ao conselho. Desde 2007 o Conselho do Fundeb pede essa prestação de contas”, ratifica Roberto Silva, vice-presidente do Sintese.

Relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) demonstram que somente entre o período de janeiro de 2014 a dezembro de 2015 foram enviados recursos federais do Ministério da Educação (Mec) através do programa 2030 – Educação Básica/ 0969 – Apoio ao Transporte Escolar na Educação Básica no Estado de Sergipe no montante de R$ 6.799.293,19. Dinheiro este que, conforme esmiúça a CGU, a Secretaria de Estado da Educação (Seed) não consegue comprovar o uso adequado.  A controladoria alega ainda que, durante toda a investigação, entre o período de março a abril de 2016, em que foram realizados pela própria CGU trabalhos em campo, houve sonegação ou atraso de entrega de documentos e de informações solicitadas por parte da Secretaria de Estado de Educação.

As acusações da controladoria são todas embasadas em documentação oficial e datas. Segundo a CGU, o governo federal repassou para o Estado de Sergipe a importância de R$ 3.356.964,53 em 2014 e R$ 3.376.328,66 em 2015. Valores que serviram para dar cumprimento ao Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar – Pnate. Por meio do Ofício nº 7.630/2016-CGU-Regional/SE/CGU-PR, em cumprimento ao disposto na Lei nº 10.180/2001, a controladoria solicitou informações e documentos necessários à fiscalização do Programa.

Porém, a secretaria não soube comprovar onde está o dinheiro, porque, mesmo com a solicitação da controladoria acerca do programa, o Estado de Sergipe, ao ser fiscalizado, disponibilizou apenas o processo licitatório para a contratação dos serviços de transporte escolar. E os outros documentos e informações foram entregues muito tempo depois do fim do prazo.

Além disso, o Estado de Sergipe não forneceu os processos de pagamento do exercício de 2014 relativos ao Contrato nº 09/2014, celebrado com a Itapé Turismo Ltda, pelos quais foram pagos à mencionada empresa o valor de R$ 254.365,05. Também não foram entregues os processos de pagamento relativos ao contrato nº 10/2014 celebrado com a Localyne Transporte Turismo Ltda, contrato nº 18/2004 celebrado com a Transtop Locação de Veículos Ltda e contrato nº 20/2014 também celebrado com a Localyne Transporte Turismo Ltda.

À secretaria também foi solicitado todos os controles da execução do transporte escolar em Sergipe, que são os mapas com roteiro diário dos veículos, as distâncias percorridas, o número de alunos transportados por dia e por veículo, os trechos atendidos, o percurso percorrido em quilômetros e nem os turnos em que cada veículo presta serviços. Neste relatório da CGU também foi pedido à Seed todos os registros (livro de ocorrências) realizados pela administração à época, relacionados à execução dos contratos de prestação de serviço de transporte escolar.

Conforme estabelece art. 26 da Lei nº 10.180/2001, “nenhum processo, documento ou informação poderá ser sonegado aos servidores dos sistemas de contabilidade Federal e de Controle Interno do Poder Executivo Federal, no exercício das atribuições inerentes às atividades de registros contábeis, de auditoria, fiscalização e avaliação de gestão”. Sendo assim, Estado de Sergipe não somente emperrou como prejudicou significativamente toda a fiscalização do Pnate.

BAGUNÇA NOS PREGÕES DA SEED

E as irregularidades não param por aí. Porque foram publicados editais para contratação de transporte escolar sem previsão de custo por quilômetro ou por aluno. O Estado promoveu, por meio do pregão eletrônico de número 432/2013, uma licitação da qual resultou a celebração de dez contratos de prestação de serviços com oito empresas diferentes.

Ficou estipulado nesses contratos o seguinte objeto: serviços de locação de veículos (tipo ônibus), sob regime de fretamento contínuo, para transporte de alunos da rede pública estadual de ensino, capital e interior, residentes em povoados, ou cuja excepcionalidade exija o uso do transporte, abrangendo os 75 municípios sergipanos, com deslocamento de suas localidades até as unidades escolares”. Os erros deste pregão são inúmeros. A começar pelo fato de não se ter observado em seu processo licitatório o que dispõe a Resolução FNDE nº 12, de 17 de março de 2011 que determina que o custo seja por quilômetro ou por aluno transportado.

E a capacidade mínima do ônibus não guarda relação com a quantidade efetiva de alunos que este ônibus realmente transporta, que é o que a Resolução exige. Portanto, não há na licitação qualquer parâmetro para atendimento da Resolução.

O que o Estado fez foi estimativa aleatória de quantos quilômetros cada ônibus percorreria em um mês – independentemente do município, da localidade e do trajeto real a ser percorrido. O Estado fixou um quantitativo de 2.000 km/mês, sem demonstrar por que meios chegou a essa estimativa e o que a Resolução exige é que os custos sejam calculados com base na quantidade de quilômetros efetivamente transcorridos.

Ônibus escolar de Tomar do Geru em situação irregular é apreendido em Cristinápolis

VALORES ALTOS, SERVIÇO PRECÁRIO

Mas se para ofertar os serviços o que funcionava era estimativa, para cobrar e arrancar dinheiro dos cofres públicos (diga-se, do povo), o que estava valendo era mesmo um enorme desacordo com o estipulado nos pregões. Como por exemplo o pregão eletrônico nº 432/2013. O pregão dividiu a prestação dos serviços de transporte escolar em 15 lotes para cobrir todos os municípios. Em cada lote, foi especificada uma determinada quantidade de ônibus necessários. E todos os contratos resultantes do citado pregão receberam termo aditivo aumentando o quantitativo de ônibus.

Mas os serviços (quantitativo de ônibus locados) indicados nas notas fiscais não correspondem, em diversos pagamentos, aos ajustados nos respectivos contratos e termos aditivos. Somente a título de exemplificação, há contratos com 19 veículos que receberam 8 veículos como aditivos. Contratos que começavam com 36 ônibus pularam para 45 ônibus. E para onde afinal foram estes veículos, usados em quê e quando e em qual trajeto? Isto o governo de Sergipe tampouco a Secretaria de Estado de Educação consegue explicar.

Porque, como bem reitera o controle interno da CGU, a quantidade de ônibus contratados para prestação do serviço de transporte escolar não é um número aleatório. Deve ser contratado certo número de veículos, visando atender uma demanda preestabelecida de alunos na rede pública estadual.

GOVERNO ESCONDE INFORMAÇÃO

E a documentação da controladoria é clara em afirmar que “O Estado de Sergipe não apresentou qualquer justificativa para a celebração de diversos termos aditivos aumentando a quantidade de ônibus contratados e, por consequência, o valor dos contratos (todos acima de 20% de aumento) quando na prática houve uma redução na quantidade de serviço prestado”. O que a controladoria não entende é que o Estado de Sergipe, o mais interessado em ter um serviço de qualidade, não tenha, por meio da Seed, cobrado das empresas prestadoras de serviço, licitude.

E entre tantas irregularidades, a questão de o governo ter superfaturado os preços, assusta. Apenas para exemplificação, no contrato nº 13/2014, a diferença entre a quilometragem estimada de 2.000 km por mês e a efetivamente percorrida por cada ônibus é de 48,57% a menos. Ou seja, o governo de Sergipe paga 105% a mais sobre o serviço efetivamente prestado. Por que superfaturar no preço, quando deveria ser o governo o primeiro a querer economizar e ofertar um transporte escolar de qualidade à rede pública de ensino? Eis a pergunta que o governo não responde, nem mesmo à CGU, nem ao CINFORM.

SECRETARIA NÃO RESPONDE

Na última semana, a reportagem encaminhou à assessoria da Seed os seguintes questionamentos: durante estes todos estes últimos anos, mais especificadamente de 2007 para cá, o dinheiro para o transporte escolar passou por maior controle. Porque a Seed não fiscalizou a questão dos ônibus, da quilometragem, dos lotes, dos ônibus que estão sendo alugados com alunos em períodos de férias?

Segundo. Há uma empresa que domina o mercado. Empresa essa relacionada à conselheira Suzana Azevedo. Isso há coisa de 20 anos ou mais, diga-se. Agora a PF está alinhando os depoimentos e prevê resultados céleres. E aí fica a dúvida. Quem deveria estar à frente dessa investigação, em primeiro lugar, não seria a Secretaria de Educação já que os contratos foram firmados com vocês? Terceiro. Qual é o número de alunos transportados por dia pelos veículos da Seed, os trechos atendidos por estes veículos contratados, a distância percorrida, os turnos em que cada veículo presta serviço?

Quarto. Certamente, a Seed dispõe de mapas com roteiros diários dos veículos e as distâncias percorridas. Por que não forneceu à CGU? Quinto. Por que a Seed, no que tange a informações, não fornece ao Conselho Escolar as informações sobre o transporte escolar do Estado? Sexto. Por que a Seed deixou chegar ao montante de quase R$ 300 milhões em contratos suspeitos e não fiscalizou estas empresas?

TCE DÁ RESPOSTAS MAL EXPLICADAS

Ao Tribunal de Contas do Estado de Sergipe o CINFORM questionou o seguinte: Recentemente a PF iniciou uma operação que está desbaratando a máfia do transporte escolar em Sergipe. Quase R$ 300 milhões em suspeição vindos de recursos da União. Segundo relatório da CGU de 2016 a Seed não informou praticamente nada para a CGU acerca do transporte escolar em Sergipe. Porque o TCE não fiscalizou o transporte escolar nestes últimos 20 anos aqui em Sergipe?

Existe aí no TCE dois supostos conselheiros envolvidos nesse imbróglio. Uma é Suzana Azevedo, da empresa Vitória, cuja parentes detêm o monopólio do transporte escolar em Sergipe; o outro é o próprio presidente da Casa, o conselheiro Ulices de Andrade Filho, cuja informação é a de que a empresa Via Norte, que também presta serviço de transporte escolar em Sergipe, estaria [direta ou indiretamente] relacionada a ele.

E o questionamento que o CINFORM fez ao TCE-SE: É fato que estas empresas não estão diretamente nos nomes deles, óbvio. Mas isso não é complicado para o TCE, ter conselheiros, mesmo que minimamente, envolvidos num negócio desse? O TCE investigou? Fiscalizou? Qual conselheiro cuidou ou está cuidando dessa questão do transporte escolar? Se sim, o CINFORM pode ter acesso a conclusão destas fiscalizações?

Seguem as respostas, na íntegra. Sobre o tema levantado, é importante lembrar que compete ao Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União a Estado, ao Distrito Federal ou a município. No entanto, sempre que há recursos estaduais e/ou municipais envolvidos, o TCE fiscaliza, sim, o transporte escolar e os seus respectivos relatórios de inspeção e decisões sobre o assunto estão disponíveis nos Arquivos e no próprio Portal da instituição, a quem deseje acessar a todas essas informações.

Com relação objetiva às auditorias conduzidas pela CGU, o Tribunal de Contas, sempre que solicitado, tem colaborado e respondido sistematicamente a todos os pedidos de informações dessa Controladoria. Por seu turno, o vice-presidente do TCE, conselheiro Carlos Alberto Sobral, atual responsável por essa área – determinou no final do ano passado a realização de auditoria extraordinária no âmbito do transporte escolar.

Ou seja, é algo que vem sendo analisado pela equipe técnica do órgão. “Assim como a CGU, o TCE também é um órgão que preza pela boa aplicação dos recursos públicos, de modo que, no que a CGU precisar, encontrará todo o apoio desta Casa – como já vem sendo feito nessa e em outras ações”, afirma o conselheiro. Ainda segundo ele, não há, nas auditorias, inspeções ou processos que tramitam no órgão, nenhum conselheiro do Tribunal de Contas identificado como responsável direto ou indireto por gestão de qualquer empresa. “O TCE é uma instituição onde seus membros atuam com responsabilidade e se comportam sempre como conselheiros, não como donos de empresas ou representantes de interesses de particulares”, conclui o conselheiro.

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