Mariana acordou naquela manhã com um sentimento muito forte de não-pertencimento. Na verdade ela já vinha tendo essa sensação há algum tempo e se ouvia vez por outra cantando a canção Travessia, de Milton Nascimento, repetindo sempre os versos “minha casa não é minha e nem é meu este lugar” quase como um mantra.
Ela tinha se aposentado recentemente e, revendo velhos documentos, como é de hábito acontecer com as pessoas à medida que vão envelhecendo, deu de cara com a surrada carteira de trabalho para descobrir, perplexa, que completara exatos cinquenta anos que havia sido assinada. Como disseram os seus filhos, isso era quase um cativeiro.
Mas, e esse estranhamento, essa inquietude… O que fazer a respeito? Mariana resolveu sair. Desceu pela escada os sete andares do prédio onde morava como que sentindo a necessidade de se plantar. O elevador simplesmente a fazia descer como se fosse um ser volátil e certamente a tal sensação de não pertencer a acometeria novamente. Precisava tocar o chão, afinal ela era uma Jequitibá e certamente não fora à toa que os seus ancestrais escolheram esse sobrenome para caracterizar a família.
Pegou o carro e dirigiu sem destino, deixando que o acaso a levasse e a protegesse já que andava ultimamente tão distraída. Sentia-se desenraizada como se isso fosse possível a alguém do ramo jequitibá, que na língua tupi significa “gigante da floresta”.
Depois de dirigir cerca de quarenta minutos ela se viu diante da casa que fora o seu lar da infância, num pequeno município próximo à capital onde morava, e que não era visitada pela família há muitos anos.
Seu pai sempre dizia que terra e casa não se vendia, portanto lá estava ela, bem desgastada é verdade, mas de pé. A porta da casa estava apenas encostada já que quase nada mais restava daquela que fora um dia seu paraíso.
Percorreu-a se dando conta do quanto era bem menor do que o casarão que habitava as suas reminiscências. Pequena que era, a casa se lhe
afigurava grande ou as impressões gerais sobre o vasto mundo lhe mostravam o quão pequena era a casa?
Daquele dia em diante passou a ir quase todos os dias àquele local. Trocou as portas e janelas, trancou-as com fechaduras mais seguras, recuperou a pintura, melhorou a cozinha e a cada dia colocava um móvel novo, tudo muito simples mas de grande utilidade. Hoje ela dormiria lá. Cama nova, lençóis limpinhos e uma lua cheia que a fez dispensar as luzes elétricas com sua luminosidade controlada por pequenos artefatos tão fáceis de manipular. Queria “a lua branca de fulgores e de encanto” e tudo o que uma noite estrelada podia lhe proporcionar sem as interferências da modernidade.
Choveu a noite inteira e, na manhã seguinte, ela acordou cedo, sentindo o cheiro de terra molhada entrando pelas suas narinas agora tão pouco habituadas a cheiros naturais. Saiu e contemplou à sua frente aquela terra até ontem ressequida e que agora se oferecia plena, como uma promessa de vida.
Cultivou um jardim porque, afinal, a beleza é fundamental e ela lembrava nitidamente que outrora ali havia canteiros com sorrisos em profusão, roseiras, dálias, crisântemos que floresciam sempre prontos a embelezar um jarro simples que adornava a sala de estar.
No quintal plantou uma horta de onde passou a retirar verduras fresquinhas e também um pomar que levaria algum tempo pra produzir, mas que traria de volta os cheiros e sabores da infância.
À medida que ela recuperava o lugar e nele se instalava, começou a voltar pra casa cantando cada vez menos a música que havia se instalado de maneira insidiosa em sua memória a ponto de incomodá-la. A sensação é que houvera feito a travessia. O retorno às origens a havia plantado no seu mundo. Afinal, ela era Mariana Jequitibá.