A expressão que já se tornou meio clichê, de que “o mundo não será mais o mesmo após essa pandemia”, talvez caminhe para a realidade. Ao que tudo indica, as pessoas estão lidando com as outras em função de um inimigo que é comum e invisível, o vírus. Todos nós somos portadores potenciais desse mal e, por conseguinte, inimigos uns dos outros. Mesmo com a máscara no rosto e álcool em gel nas mãos, sempre imaginamos que o outro vai nos contaminar. Surge aqui uma guerra, real ou imaginária, de todos contra todos. Este cenário se torna ainda mais real num ambiente de viagem aérea, especialmente, ao exterior. Tudo é motivo de tensão.
Por uma questão inadiável, fui levado a fazer uma viagem ao exterior, tomando todas as precauções possíveis e imagináveis. Levo comigo pouca coisa porque pretendo andar leve: uma pequena mala despachada, um bornal com meu computador, duas pastas cheia de documentos para comprovar que sou honesto e que não tenho vírus, do ponto de vista científico.
A primeira parada é em São Paulo e começo a sentir certa apreensão. Tento entrar na fila do check-in e imediatamente um funcionário da companhia aérea me pede um formulário de saúde. Até então, sabia da exigência do teste negativo PCR feito 72 horas antes da viagem. Mas isso não é suficiente. Entro no site do governo mexicano e preencho o pré-requisito para entrar na fila. Faço nova tentativa e mostro o meu celular com o código e, enfim, sou conduzido ao paraíso do acesso ao cartão de embarque. De posse dele, passo pela alfândega, pela segurança e vou caminhando pelo belo espaço que outrora era cheio de gente e hoje quase todas as lojas estão fechadas.
Chego no México. Lá, não encontrei aquela estereotipada alegria dos cantadores mexicanos. Via-se muitas lojas fechadas. As poucas abertas, os transeuntes recebiam dupla verificação da temperatura: primeiramente ao entrar no shopping e, em segundo lugar, na loja almejada. Nos restaurantes, notei que não havia mais cardápio físico: tudo é feio por meio do RQ. Não vi, mesmo entre os mexicanos, cumprimentos efusivos, como fazemos no Brasil. Após cumprir meus 12 dias de quarentena, vou para o aeroporto a fim de seguir a minha rota rumo a Londres. Tento fazer meu check-in, mas a atendente da companhia aérea me pergunta sobre o visa para eu entrar na Inglaterra. Respondo-lhe, educadamente, que não há essa exigência para brasileiro. Ela me olha com cara de paisagem e duvida do que eu acabei de lhe dizer. Solicita, então, a presença de seu supervisor. Ele me faz a mesma pergunta que sua colega e eu respondo tudo novamente.
Pede-me mais documentos e os mostro. Faço cara de paisagem e lhe pergunto qual seria a dúvida. Nervoso, aquele funcionário procura qualquer coisa para justificar a sua intuição, a de que eu não poderia viajar para Londres sem visa. O curioso é que não se tratava de gente do setor da imigração, mas da companhia aérea. Após fazer cara feia, chega à conclusão de que eu poderia viajar e me devolve os documentos e o meu passaporte. Vou feliz para o embarque rumo a Lisboa, já imaginando uma taça de vinho de Além Tejo nas mãos durante o voo. Mas, antes disso, era preciso enfrentar um obstáculo inesperado: na entrada do setor de embarque, uma funcionária me pede o formulário de saúde pública de saída do país. Pergunto se é o novo teste de COVID que havia feito na véspera. Ela me olha de cima a baixo com a cara que me dizia: “você é retardado mental?”. “Não, claro! É o formulário de saída”, responde-me secamente: “Preencha agora, se quiser entrar”, complementou. Pus-me à aventura de preencher o tal formulário. Eu não tinha internet no celular e a do aeroporto era sofridamente ruim. Parece que era por ondas: às vezes funcionava bem, às vezes desaparecia completamente. Mudava de lugar para ver se o sinal melhorava. Reiniciei o aparelho para ver se a conexão ajudava. O tempo passava e olhava o povo entrando no salão e eu ainda tentando preencher o tal documento com um código RQ…Num segundo de estabilidade da rede, preenchi tudo. Na hora de enviar, a conexão caiu. Começo a ficar nervoso. Respirei fundo e repeti a operação. Num golpe da sorte, enviei rapidamente o que me exigia sob a forca. Mostrei à moça como se apresenta um troféu do primeiro lugar. Ela nem me olhou! Ufa, rumo ao avião! Desconfiei de que aquela viagem prometia histórias para contar.
Chego no aeroporto de Lisboa com tempo para tomar um café. Pouco antes do embarque, mostro meu bilhete e o teste ante COVID. A moça da TAP me olha e me pergunta sobre o formulário de saúde para entrar na Inglaterra (parece perseguição!). Eu olho para ela e digo-lhe silenciosamente: “De novo? Um outro formulário com RQ? Por que ninguém me avisou dessa exigência?”. Ela compreendeu direitinho e me respondeu de forma ríspida: “sem ele o senhor não entra no avião”. Eu me tremi. Pergunto educadamente: “onde encontro esse formulário?”. E ela: “no site do governo da Inglaterra”. E complementou: “faça isso rápido!”. Um jovem senhor inglês viu que a coisa era séria e veio me mostrar como ele fez. Eu não entendi nada. O leitor não faz ideia do que seria. Resumindo: primeiro, eu tinha que entrar num site de segurança privada, pagar uma bagatela de 210 libras esterlinas (pura ironia), receber um código por email e, somente a partir daí, responder um imenso formulário no site do governo. Imagine preencher a declaração do imposto de renda em cinco minutos! Era algo muito parecido.
Comecei a me tremer e não conseguia digitar direito. Pedi a ajuda a uma moça inglesa que estava ao meu lado. Ela tinha um charmoso sotaque inglês e foi direta: pegou o meu celular e começou a digitar. Perguntava-me as coisas e eu respondia rapidamente. Enquanto isso eu ouvia o som da atendente dizendo que era a última chamada. Além disso, a atendente da TAP ameaçou quem estava me ajudando: “se vocês ficarem mais um minuto aí os dois serão impedidos de entrar”. Senti um ódio daquela mulher escorrer pelas minhas veias. Ela exercia sobre nós um sadismo indescritível. Mas, de súbito, apareceu o tal RQ na tela de meu celular. Eu estava gelado. Passei a respirar profundamente para não ter um ataque cardíaco nem tampouco executar aquela personificação do mal. Agradeci efusivamente à moça que me ajudou e ainda tive a frieza de agradecer à atendente. Nem sei como consegui entrar no avião. Sentado na minha respectiva poltrona, voltei a respirar com algum alívio. Mas, e em Londres, como será?
Chego, finalmente, no aeroporto de Londres. No setor de imigração, uma multidão de milhares de pessoas amontoadas esperava em fila para ser atendida. Foram três longas horas de espera. Na minha vez, após me solicitar o passaporte e me inquerir o motivo da viagem, pede o tal formulário RQ. Entrego ao atendente que, sorrindo, diz-me que está tudo certo e que poderia ficar por aqui até seis meses. Contudo, relembrou-me: “o senhor precisa cumprir a quarentena de mais 10 dias no quarto de sua residência universitária, inclusive, fazendo nele suas refeições, tendo direito apenas a 15 minutos de ar fresco por dia num local reservado”. Respiro, novamente, enquanto me dirijo ao setor das malas na esperança de sair daquele ambiente o mais rapidamente possível. Vasculho de cabo a rabo e nada de encontrar a minha mala em meio a milhares delas, à espera de seus respectivos donos. Faço uma reclamação formal ao setor e, para meu espanto, novo formulário com RQ para preencher, sem o qual não poderia recebê-la. O atendente me avisa que, por alguma razão, a minha mala ficou em Lisboa e que nos próximos dias vou recebê-la em casa. Volto a respirar em busca de algum equilíbrio. O corpo deu sinais de fome e, ao sair daquele setor, fui em busca de uma água. Lanchonetes e loja de câmbio estavam fechadas. Pensei em simular um desmaio ou algo do gênero para ver se alguém me dava um gole d’água. Mas, diante de tempos difíceis não convém abusar da Fortuna!
Enfim, o mundo, de fato, mudou muito. Tornamo-nos escravos da tecnologia porque vemos no outro uma ameaça invisível ou real. Cada um usa as armas que possui. Desse jeito, não vale a pena viajar. A menos que seu nível de estresse esteja baixo e queira fazer da viagem uma aventura. Se sobreviver, terá histórias para contar.