Esse é o título de um filme lançado em 1995, ambientado no sul da França do século XIX, cujo enredo desenvolve-se em meio a uma epidemia de cólera que devasta vilarejos inteiros e cujos personagens, identificados exemplarmente pelo título da obra, buscam sobreviver em tempos de caos. O roteiro adaptado do romance de Jean Giono, produziu uma obra de grande beleza que arrebatou muitos prêmios sobretudo na França onde o filme foi produzido.
O Cavaleiro, por uma questão de segurança, resolve se deslocar por cima das casas do vilarejo que precisa atravessar para chegar a um lugar que ainda não sabe bem aonde se situa. Pisa levemente e em silêncio cada telha das casas por onde passa, tentando equilibrar-se com o cuidado suficiente que lhe permita, ao mesmo tempo, avançar sem quebrar as frágeis estruturas que o sustentam e dar um rumo adequado que lhe possibilite chegar até o rio do outro lado sem se contaminar com o mal que aflige a todos. Ele não sabe o que lhe reserva o destino. Seus braços dançam ao sabor do vento que lhe fustiga o rosto, o mesmo vento que o empurra sempre pra frente e que pode derrubá-lo a qualquer momento. O equilíbrio é frágil, avançar é preciso, as pernas às vezes ficam indecisas entre o ir e o aquietar-se, como se fosse possível ali permanecer ignorando o caos que se avista lá de cima. Seria possível ignorá-lo? Seria sensato permanecer à espera de que tudo isso passe? O questionamento dura apenas um momento pois ele sabe que a imobilidade pode matá-lo ainda que esteja em cima do telhado, porque o tempo imperioso segue o seu curso, indiferente às necessidades dos homens, às suas fraquezas e também aos seus sonhos. Os seus olhos são faróis que se estendem em todas as direções, ora mirando o norte ora o sul o leste ou o oeste como que buscando o lugar certo para onde ir, porque ele ainda não sabe que a epidemia se alastra em todas as direções. A roupa que o protege é a mesma que lhe dificulta os movimentos pois é assim que o homem segue o seu caminho, carregando pesos dos quais não pode se livrar porque a leveza pode fazê-lo despregar-se do chão que o mantém em caminhada. Desloca-se com rapidez à luz do dia porque a sombra da noite com o seu jogo de esconde-esconde pode lhe ser fatal. Salta de telha em telha, de casa em casa, até que finalmente descamba em campo aberto e corre sôfrego em
direção a uma mata verde que avista ao longe, serpenteando os corpos que avista pelo caminho para finalmente esconder-se dos homens entregando-se extremamente cansado à chuva benfazeja que lhe ameniza os anseios e abranda o seu coração.
A dama das sombras anda devagar porque ela tem muita pressa, e as incertezas do caminho tão áspero podem fazê-la tropeçar atrasando bastante a sua viagem. É preciso encontrar o caminho que julga perdido, e todos com os quais se depara ao longo da jornada escusam-se em lhe dar qualquer informação, pois fogem do contato humano outrora tão almejado. Esgueira-se por ruas estreitas e tortuosas pois sabe que pelos caminhos fáceis vai se deparar com muitas pessoas que também se deslocam, indiferentes aos perigos da aglomeração que contagia, pois a pressa em livrar-se do mal lhes embota a compreensão. As roupas, compostas de seda carmim e pesada capa de veludo, que antes revelava a sua origem nobre agora atrapalha o seu caminhar, pois o mal que se alastra não faz muita distinção entre pessoas. Seus olhos argutos procuram ao longe um voo de esperança mas o que vê são aves que rapinam em voos rasantes os corpos deixados para trás. A sombra da noite lhe possibilita maiores avanços ainda que a submeta a perigos vários, mas é preciso arriscar-se para chegar ao seu destino. Ela sabe aonde quer chegar. Baixa a cabeça para seguir adiante quase correndo e entre gritos de socorro e sussurros de preces que vão se dissipando à medida que ela avança, desaba de súbito em meio às árvores que ela sequer avistara. Ao seu lado está o Cavaleiro que jamais vira.
Levantam-se e de mãos dadas – porque a solidão da travessia lhes aguçou o desejo de estar juntos – caminham em direção ao mesmo rio que buscaram com tanto fervor. Ela sabe aonde ir, ele confia na direção. Chegam à margem de onde avistam a cidade livre do outro lado, cheia de beleza, plena de sol para descobrir com um certo grau de melancolia, que o último barco havia partido e que não há previsão de outro até que a epidemia do lado de cá seja debelada. Suspiram juntos e demoradamente, esvaziando os pulmões de toda a tensão que os mantiveram em fôlego curto, dolorido e medroso. Uma sensação de paz os invade. Pelo menos, já não estão sós!