Aos 14 anos, Rachel Lima começou a fumar. O hábito, cultivado às escondidas, surgiu como uma brincadeira de criança e a acompanhou até a fase adulta, momento da vida em que se viu entre o vício e a vontade de ser exemplo para seus educandos, meninos e meninas de 8 e 9 anos de idade.
Professora da rede municipal de ensino de Aracaju e da rede estadual de Sergipe, ela sentia vontade de retribuir o carinho dos alunos com abraços, mas a vergonha do cheiro que exalava retinha a demonstração de afeto. Um dia, a chave virou e ela sentiu que precisava de ajuda.
“Na minha adolescência, tive um professor que fumava no meio da aula e ele jogava a bituca de cigarro no chão da sala. As bitucas maiores eu pegava para fumar”, recorda.
Na capital sergipana, Rachel, atualmente com 43 anos, encontrou o Programa de Combate ao Tabagismo, desenvolvido no Centro de Especialidades Médicas de Aracaju (Cemar) do Siqueira Campos, coordenado pela Prefeitura de Aracaju, por meio da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Em seis meses de tratamento, ela passou a dizer a si mesma, diariamente: “só por hoje, nunca mais”. Rachel já não exala o cheiro de cigarro.
“Comecei o tratamento no dia 27 de dezembro de 2020, entre os festejos de natal e ano novo, depois que desenvolvi uma broncopneumonia, sendo que, aos 27 anos, tive um câncer de tireóide e sabia que, por ser fumante e já ter tido câncer, havia grandes chances de ter a doença uma ou outras vezes mais. Percebi que eu não conseguiria sozinha e, por isso, decidi procurar por ajuda, e o programa foi fundamental nesse processo”, destaca.
Segundo Raquel, a partir do programa ofertado na rede municipal, ela encontrou o apoio que necessitava. “Uma das coisas que mais me marcou foi ouvir da médica: ‘são dores do mesmo jeito. É a dor de continuar a viver essa situação ou a dor de mudar’. Isso me despertou. A pandemia também foi algo que me alertou. Li, algum dia, que quem fuma pode ter mais complicações por covid-19, o que me preocupou ainda mais”, relata Rachel.
Hoje, a professora e ex-fumante se recorda da volta para casa, depois que saiu da primeira consulta do programa. “Fumei dois cigarros, do caminho do Cemar até minha casa, no Mosqueiro. Quem tem cigarro, não gosta de jogar fora. Acabei deixando apenas um e meu marido, que não gosta de cigarro, fumou de raiva para não me ver fumando aquele último”, conta.
“Tem aquela máxima de ‘só por hoje’ e é, de fato, assim. Não adianta eu dizer que não vou fumar pelos próximos 20 anos, mas, hoje, eu não fumo. É uma batalha diária. Cheguei a ter dores de cabeça, além da dor emocional, muito mal humor. Agora que não estou fumando, quando eu retornar para a escola para as aulas presenciais, isso vai ser uma alegria. Poderei dar outro exemplo aos meus alunos e não terei mais vergonha do meu cheiro”, conta Rachel.
Respire fundo
Outra usuária do Cemar que cumpriu a meta de parar de fumar foi Silvaneide Moura. Ela lembra que fumava um cigarro, esporadicamente, mas, aos 50 anos, depois de a filha mais velha desenvolver uma depressão profunda, aumentou o consumo e se viu tragando uma carteira de cigarro por dia.
“Engraçado que, durante a minha infância, minha mãe tinha um bar e vendia cigarro, mas eu nunca cheguei perto, na época. Já mais madura, comecei. Foi como uma válvula de escape, diante do problema vivenciado em casa, com minha filha em depressão. Eu sentia muita vergonha de fumar, além de não conseguir respirar direito, nem dormir, e perceber minha pele diferente, assim como o odor desagradável do cigarro”, discorre Silvaneide.
A mudança de hábito veio depois de outro gatilho: o marido, fumante há 40 anos, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), no réveillon passado.
“Ele ficou com sequelas do AVC e, no dia 21 de janeiro, iniciamos o tratamento no Cemar. Lá, o tratamento é feito para seguir três passos e, em março deste ano, escolhi o dia D para parar de fumar, quando me senti, de fato, preparada para dizer o ‘chega!’. No processo de querer parar, sentia tontura, ânsia de vômito, palidez. Quando vinham esses sintomas de abstinência, respirava fundo, desviava o pensamento para outra coisa, chupava uma bala de gengibre ou mascava um chiclete. Depois o organismo foi se acostumando”, afirma a empresária, hoje com 53 anos.
Entre um fôlego e outro, Silvaneide ainda convive com a incitação morando debaixo do mesmo teto. “Meu marido ainda não conseguiu parar de fumar, diminuiu o consumo, mas não parou, e sentir o cheiro em casa é complicado, mas estou conseguindo seguir com o meu compromisso comigo mesma. A qualidade de vida é outra. Hoje, me sinto com muito mais energia. O tratamento é excelente, mas ele, por si só, não faz milagres. A vontade tem que partir da pessoa”, salienta a paciente em alta médica.
Acolher e tratar
Somente este ano, 530 pacientes já passaram pelo Programa de Combate ao Tabagismo, dos quais cerca de 200 receberam alta e somente 56 abandonaram o tratamento.
Neste domingo, dia 29, quando é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Fumo, a coordenadora do programa, Nazaré Aragão, comemora, também, o número de usuários que passaram pelo programa, mas ressalta que todo o processo é realizado, sobretudo, como uma forma de acolhimento.
“Parar de fumar, assim como se livrar de qualquer outro vício, é um desafio, e o programa não existe para julgar as pessoas, mas para acolher suas dores e tratar, dentro daquilo que essas pessoas se permitem fazer, afinal, tem que haver a vontade delas para que funcione. Atualmente, temos registrado números muitos positivos relacionados ao programa, e isso é um incentivo”, frisa Nazaré.
O serviço, porta aberta, é ofertado no Centro de Especialidades Médicas de Aracaju (Cemar) do Siqueira Campos, situado na rua Bahia, s/n, de segunda a sexta-feira, das 8h às 16h. Os interessados precisam residir na capital e apresentar o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Conforme destaca a coordenadora do programa, durante a pandemia, o serviço teve aumento na procura, justamente porque os fumantes passaram a ter maior noção do risco que correm.
“Sempre utilizamos a frase ‘você não nasce fumando e não é obrigado a morrer fumando’, um estímulo inicial para mobilizar os pacientes a compreenderem que estar fumante não é o mesmo que ser fumante, ou seja, a condição pode ser mutável, desde que se busque ajude. O tratamento utiliza a abordagem cognitivo-comportamental para entender os motivos do vício e a duração. Além disso, o programa atende, também, casos de recaída, garantindo o acompanhamento do paciente em todas as fases”, ressalta a coordenadora.
De acordo com Nazaré, Aracaju é referência para o Ministério da Saúde e, agora, trabalha para retornar com os trabalhos em grupo, suspensos devido à pandemia. “Faremos reunião de grupos nos dias 15 e 29 de setembro, cada turma com, no máximo, 15 pessoas, e respeitando todos os cuidados preventivos à covid-19”, reforça.
Apesar de ser um assunto recorrente e há muito tempo tido como uma questão de saúde pública, sendo o tabagismo considerado uma doença crônica e que integra o grupo de transtornos mentais e comportamentais, ainda é alto o número de fumantes, são mais de 20 milhões em todo o país.