O conjunto de fatos que ficou conhecido na historiografia brasileira como Revolta da Chibata, título do clássico jornalista Edmar Morel publicado em 1959, revela as contradições da jovem república brasileira. Um acontecimento, no sentido histórico do termo, capaz de marcar o tempo entre o antes e o depois, revelar mecanismos sociais aparentemente pouco visíveis e tornar-se lembrado, assim como, de diferentes maneiras.

A memória da Revolta da Chibata esteve presente numa série de manifestações culturais desde o início do século XX. O conflito travado entre aqueles que desejavam comemorar o levante e celebrar o seu maior herói e a recuperação de João Cândido – o almirante negro – por outros atores mais contemporâneos, como movimentos sócias e movimentos negros, e a criação de lugares de memória.

Queridos leitores, vamos compreender os fatos. No início da República, na Marinha do Brasil, os marinheiros eram em sua grande maioria negros recém libertos. Estes, por sua vez, submetidos a uma árdua rotina de trabalho em troca de baixos salários. Qualquer insatisfação, naquele momento, era passível de punição e a disciplina nos navios era mantida pelos oficiais por meio de castigos físicos, dos quais a “chibatada”, era a penalidade mais comum. Som! Apesar de ter sido abolida na maioria das forças armadas do mundo, os castigos físicos ainda eram uma realidade presente no Brasil.

Diante do contexto, a insatisfação dos marujos cresceu depois que os oficiais receberam aumentos salariais, mas não os marinheiros. Desse modo, com o aumento dos salários dos oficiais e a sobrecarga de trabalho, alguns marinheiros passaram a planejar um protesto. O estopim desse enredo deu-se após o castigo do marujo Marcelino Rodrigues Menezes, açoitado até desmaiar, com 250 chibatadas. Caro leitor, o “normal” eram 25, como punição por agredir um oficial.

O levante foi liderado pelo experiente marujo João Cândido Felisberto, detalhe, negro e analfabeto. Os revoltosos exigiam: o fim dos castigos físicos; melhores condições de alimentação e trabalho; anistia para todos os envolvidos na revolta.

Assim sendo, no dia 26 de novembro, o presidente Marechal Hermes da Fonseca, que havia acabado de tomar posse, acatou as reivindicações dos amotinados, encerrando aquele episódio da revolta, porque a história não

termina com tal desfecho. Dois dias depois de entregarem as armas, fora decretado “estado de sítio” e iniciou-se o expurgo e prisão daqueles marinheiros considerados indisciplinados.

A revolta dos marinheiros de 1910 serviu de inspiração para produção musical, artística e cinematográfica, partindo da memória imediata ao esquecimento. As memórias de seu maior ícone, João Cândido pode ser compreendida da seguinte forma: num primeiro momento, sua iniciação na Marinha e viagens internacionais; em um segundo tempo, os fatos da revolta dos marinheiros, desde a organização até a anistia e um terceiro, a própria vida de Cândido no cumprimento da função de denúncia, cuja acusação consistia no governo de ter contribuído para a preparação da revolta de dezembro no Batalhão Naval.

A figura de João Cândido vem se tornando, na virada do século XXI, um herói nacional, reconhecido igualmente pelos poderes na escala federal. A história da memória da revolta dos marinheiros e do processo de transfiguração de João Cândido em herói, remete à necessidade de evocar a história em diferentes momentos e por diferentes atores, como uma forma de denunciar a continuidade de uma violência institucionalizada.

A história da Revolta da Chibata se inscreve, portanto, num quadro mais amplo de busca pela cidadania. A memória da revolta não é única. Assim como existem diferentes versões do acontecimento, estudar seus processos de construção é bem interessante. Os dois grupos (memória das famílias e memória dos oficiais da Marinha) buscam uma imagem positiva e estão preocupados com a escrita e a preservação de um passado glorioso.

É valido destacar que a retomada da figura de João Cândido e a revolta, é uma forma de responder às necessidades da memória com relação a dois tipos de vítimas da história brasileira. Os perseguidos pelo autoritarismo militar e, em particular, os afrodescendentes.

Esta coluna repudia qualquer tipo de preconceito e diz não à tortura. Independentemente de sua origem, seja indivíduo, grupo social, partido político ou mesmo ideológico, práticas como racismo e discriminação não podem ser toleradas em nenhum lugar do mundo.