A palavra “fascismo” voltou à ordem do dia, embora o fascismo nunca tenha saído de moda. Basta ver o título de alguns livros publicados no Brasil nos últimos tempos, como o do antropólogo baiano Antonio Risério, autor de Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária (2019), livro que procura denunciar as fraturas produzidas na esquerda pelos diversos pós-modernismos, como a teoria do lugar de fala, que, segundo o autor, traria embutida elementos de “autoritarismo delirante”. Logo no início da obra, o antropólogo explica o que o motivou a escrevê-la: “a indignação diante do fascismo crescente que vem caracterizando, nos últimos anos, o discurso e a conduta do segmento hoje mais barulhento da esquerda brasileira: a chamada esquerda pós-moderna, com sua linha de frente nos movimentos ditos ‘identitários’ e suas milícias brutais”.

Ao usar o termo fascismo de forma tão extensa e pouco rigorosa Risério mistura alhos com bugalhos. Nas redes sociais, nota-se igualmente um amplo uso dos termos “fascista” ou “fascismo”, que são empregados de forma banal ou distorcida. Há nesta seara as opiniões dos seguidores do guru Olavo de Carvalho, que afirmam a existência de um “fascismo de esquerda”, associando a expressão a uma vaga ideia de “comunismo” ou “stalinismo”. Há também falácias mais sutis, como a que encontramos nas páginas do Instituto Mises, um think tank do neoliberalismo, que associa socialismo e fascismo de forma achatada.

Só para se ter uma ideia do absurdo, basta lembrar que Lew Rockwell, CEO do Instituto, em seu texto O que realmente é o fascismo? afirma o seguinte: “sob o fascismo a divisão entre esquerda e direita se torna amorfa. Um partido de esquerda que defende programas socialistas não tem dificuldades alguma em se adaptar e adotar políticas fascistas”. Assim, na visão do Instituto Mises, apenas porque defende o protagonismo do Estado na economia para salvar o capitalismo de suas crises, um economista como Keynes se aproximaria do socialismo e, portanto, do “fascismo”, uma vez que, como argumenta Lew Rockwell, “o controle estatal do dinheiro, do crédito, do sistema bancário e dos investimentos é a base exata de uma política fascista” (sic).

Qualquer estudante de lógica I do curso de filosofia evitaria essas piruetas retóricas e saberia desfazer essa falácia. Do mesmo modo, não é preciso muito esforço intelectual para perceber a distância que há entre o papel do Estado em Keynes, que era

na verdade um liberal, e o assim chamado “fascismo histórico”, protagonizado por Mussolini. A falta de rigor destas associações apressadas sugere, no mínimo, desonestidade intelectual. A posição de Rockwell não passa de propaganda dirigida para um nicho de devotos, pois não há compatibilidade possível entre fascismo e a tradição liberal. O liberalismo clássico liga-se ao ideal iluminista, justamente o contrário do que propõe os regimes fascistas. Mas, invertendo o raciocínio de Rockwell, cabe perguntar: pode o fascismo ser compatível com o neoliberalismo do Instituto Mises? Será correto dizer que um partido de direita ( ou extrema direita) que defende programas neoliberais não tem dificuldades alguma em se adaptar e adotar “políticas fascistas”?

Se levarmos em conta as políticas de extermínio da população, típicas dos regimes fascistas, a resposta é: sim! Teríamos, neste caso, um tipo de “fascismo” ou neofascismo no qual o Estado (ainda que mínimo) é compatível com políticas genocidas. Neste caso, o Estado esquece o bem comum, ou seja, o que é de domínio público, para servir apenas a bancos e lobistas com a famosa tese da ortodoxia orçamentaria, promovendo o desmonte de direitos básicos, como saúde e educação, para transformá-los em serviços vendidos para quem possa pagar. Além de não intervir na economia, o Estado, para o neoliberalismo, deveria servir ao mercado e pouco importa se isso ocorre numa forma de governo republicana ou autoritária. Neste segundo caso, a identificação entre neoliberalismo e fascismo seria mais direta, porém, mesmo em regimes ditos “democráticos” ela pode ocorrer. Pode-se usar o Estado, por exemplo, para perseguir uma parcela da população, ou exterminá-la, servindo-se de um vírus letal para tal fim. No caso do Brasil, hoje sabemos que se o governo – que é neoliberal – tivesse adotado políticas públicas adequadas não atingiríamos jamais a marca de mais de 500 mil mortos.

Por fim, pode-se afirmar que na perspectiva neoliberal o Estado só é mínimo no que diz respeito ao bem comum do povo, mas é máximo na hora de atender as demandas do mercado que financia o crédito, coloniza o desejo e direciona o consumo dentro da gaiola de ferro da “lei e da ordem”, na qual “liberdade” rima com dinheiro, e quem não o tem, morre um pouco por dia, como tantos Severinos, como diria o poeta.

 

 

Antonio José Pereura Filho

Professor de Filosofia da UFS e membro do Grupo de Ética e Filosofia Política.

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