São articuladas políticas públicas de diversos setores que objetivam garantir que a vítima seja completamente amparada

Quando Maria da Penha iniciou uma luta de quase duas décadas em busca da punição do seu agressor, talvez ela não imaginasse que mudaria a vida de tantas mulheres brasileiras. Após anos de violência que culminaram na tentativa de feminicídio que lhe tirou os movimentos das pernas, a cearense se tornou símbolo de resistência ao evidenciar a situação de negligência que atingia as vítimas de violência doméstica no país. Foi a partir da sua história que casos semelhantes passaram a ser tratados como violência contra a mulher em razão de gênero, sendo constatado um padrão nesses crimes: a impunidade dos agressores.

Para mudar esse cenário, em agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, que se consolidou como a principal ferramenta de combate a esse crime no país, tendo como mecanismos primordiais as medidas protetivas, que buscam preservar a integridade física e mental da vítima. Segundo o Painel de Monitoramento do Conselho Nacional de Justiça, 2.679 medidas protetivas de urgência foram concedidas pelo Tribunal da Justiça de Sergipe em todo o ano de 2022. Em menos de oito meses, 2023 já quase alcança os números do ano anterior, com 2.443 medidas concedidas até o momento. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 apontou que Sergipe foi o segundo estado do país que mais deferiu medidas protetivas no país no último ano.

Apesar de serem originadas por uma realidade negativa, as estatísticas também revelam que há uma maior procura da vítima pela rede de proteção, que envolve a denúncia da violência à polícia, o que é reflexo da ampliação da divulgação sobre esses serviços. Uma das principais ferramentas que o Governo do Estado encontrou para alcançar esse objetivo foi a recriação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), vinculada à Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (Seasc). Gerida pela secretária Danielle Garcia, a pasta tem como intuito promover a articulação entre políticas públicas de diferentes setores, a fim de garantir mais assistência e proteção às mulheres, inclusive àquelas em situação de violência.

De acordo com a secretária Danielle Garcia, essa articulação é fundamental para que a mulher vítima de violência seja assistida para além da proteção criminal, de forma a garantir também sua qualidade de vida. “O combate à violência doméstica não pode ser uma coisa isolada. Isso é necessário para que ela tenha todos os seus direitos preservados, não só o direito à integridade física, moral e psicológica, mas também o direito de ir e vir, de habitar, de comer, de ter os seus filhos consigo em uma situação de segurança”, ponderou.

Nesse contexto, a gestora aponta que gestão estadual desenvolve uma série de ferramentas que buscam promover a proteção e assistência integral dessas mulheres:

Assistência

Criado no ano de 2020, o Programa Cartão Mais Inclusão (CMais), operacionalizado pela Seasc, beneficia sergipanos em situação de vulnerabilidade social. Atualmente, a ação contempla sete modalidades diferentes de atendimento, incluindo o CMais Mulher, que assiste mulheres vítimas de violência com o repasse de R$ 500,00 mensais. O objetivo é proporcionar condições para que essa mulher rompa o ciclo de violência.

“O benefício garante para essa mulher uma transferência de renda durante seis meses. Em paralelo, essa mulher assistida é colocada em processo de capacitação, a gente a inscreve no NAT [Núcleo de Apoio ao Trabalho] e tenta o encaminhamento dela para o mercado de trabalho, para que a independência financeira faça com que esse rompimento do ciclo seja mais firme”, destacou a secretária Danielle Garcia.

Segurança

Em Sergipe, as situações de crimes em flagrante devem ser comunicadas à Polícia Militar pelo telefone 190. Já casos de crimes recorrentes devem ser comunicados ao Disque-Denúncia, no telefone 181. As vítimas também podem procurar o Departamento e Delegacias de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGVs), ou ainda qualquer delegacia no próprio município.

As denúncias feitas ao 190 são direcionadas ao Centro Integrado de Operações em Segurança Pública (Ciosp), que é a porta de entrada das demandas de urgência e emergência da segurança pública no estado. Para garantir maior celeridade e efetividade no atendimento aos casos de violência doméstica, o Cisop conta com equipes treinadas. Após a denúncia, a ocorrência é imediatamente encaminhada ao setor de despacho das viaturas, para que a equipe policial mais próxima seja direcionada ao local do crime.

Outra iniciativa da Segurança Pública do Estado é a Ronda Maria da Penha, por meio da qual, desde 2019, a Polícia Militar de Sergipe desenvolve ações voltadas para a prevenção da violência contra a mulher com a fiscalização do cumprimento de medidas protetivas e o acolhimento às vítimas de agressão.

Casa da Mulher Brasileira

Uma iniciativa do Governo Federal, a Casa da Mulher Brasileira é um centro de atendimento especializado destinado às vítimas de violência contra a mulher. O objetivo é que, no mesmo local, estejam concentrados todos os serviços necessários para amparar essa mulher – acolhimento, apoio psicossocial, serviço de saúde, delegacia especializada, Juizado, Ministério Público, Defensoria Pública e iniciativas para garantir o empoderamento e a promoção da autonomia econômica, além de mecanismos de cuidado com as crianças, como alojamento temporário e brinquedoteca.

Em Sergipe, a ordem de serviço da Casa da Mulher Brasileira foi assinada na última quarta-feira, 23. De acordo com a secretária Danielle Garcia, já foi resolvido todo o processo licitatório, com a escolha da empresa e do local onde a casa será instalada. A previsão é de que a construção dure cerca de um ano. “É o local onde a mulher vítima de violência vai encontrar todos os serviços para a sua atenção, para que ela saia dali com esse ciclo de proteção integral. Inicialmente a Casa vai funcionar em Aracaju, mas já há previsão de uma outra no interior”, detalhou Danielle Garcia.

Lei Maria da Penha

Após 17 anos de sua criação, a Lei Maria da Penha passou por uma série de mudanças para se adequar às necessidades da sociedade. Dentre as principais alterações na legislação, está a possibilidade de concessão de medida protetiva sem que o agressor seja necessariamente investigado e preso. Segundo a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Sergipe, a advogada Flávia Elaine, a mudança facilita a denúncia e, consequentemente, a proteção da vítima, visto que muitas mulheres deixam de denunciar o crime por conta do vínculo afetivo com o autor da violência.

“O grande diferencial é que essas mulheres podem simplesmente pedir uma medida protetiva, sem que isso venha resultar também em uma ação penal. A medida protetiva sempre foi uma ação autônoma, mas isso antes acabava, após o inquérito policial, gerando ou não uma ação penal. Muitas mulheres deixavam de denunciar porque não queriam ver seus companheiros, ex-companheiros ou pais de seus filhos passarem por um processo criminal. É uma decisão difícil e dolorosa, e por mais que a gente fale que é importante denunciar, só sabe quem passa”, explicou.

Outra mudança significativa veio em 2022, quando o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a Lei também deveria ser aplicada aos casos de violência doméstica contra mulheres trans. “À medida que a sociedade vai evoluindo, a gente vai percebendo que precisa ampliar esse leque. As mulheres trans estão no mesmo contexto, a gente não pode criar uma diferenciação. A legislação abraça todas e coloca todas no mesmo patamar”, pontuou Flávia Elaine.

Vale ressaltar que a Lei Maria da Penha protege a vítima contra os cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. “São violências que as pessoas têm dificuldade de identificar, porque encaram como violência apenas a agressão física, mas que podem deixar marcas e danos irreversíveis para uma mulher”, explicou a advogada.

Ciclo de violência

É nesse contexto que muitas vezes se formam os ciclos de violência, que, segundo a psicóloga Elenrose Paesante, podem ser divididos em três fases. “Um aumento da tensão, o ataque de violência e a fase da calmaria, que vem com pedidos de desculpas por parte do agressor e promessas de não mais repetir a agressão, até que surge um novo começo. A vítima pode ficar presa por anos nesse ciclo, até que possa tomar consciência da situação. As ações violentas são interpretadas, muitas vezes, como ciúmes, excesso de cuidado ou temperamento forte, por parte do parceiro”, alertou a especialista.

Ainda de acordo com a psicóloga, quando não conseguem romper esse ciclo, as vítimas podem ser impactadas a longo prazo. “Muitos são os prejuízos, gerando danos incomensuráveis à vida da mulher. Práticas veladas, como humilhação e desvalorização moral, ameaças, perseguição e chantagens, são atitudes que abalam a autoestima da vítima, gerando vergonha, culpa, medo e tristeza. Diante disso, a mulher se anula, se isola, perde o sentido de vida, o amor próprio, a motivação, deixa de cuidar da saúde, da aparência e se abandona. Tudo isso pode desencadear transtornos mentais severos, ansiedade, pânico, estresse pós-traumático, depressão”, detalhou Paesante.

Como romper o ciclo

De acordo com a psicóloga Elenrose Paesante, o primeiro passo para ajudar uma mulher a romper o ciclo de violência é o acolhimento, especialmente vindo de amigos e da família, seguido do encaminhamento para profissionais capacitados a orientá-la. “O que a vítima não precisa é de julgamentos e críticas. Ter alguém em que se possa confiar e oferecer suporte nesse primeiro momento é fundamental. Mas isso só não basta, é necessário o acompanhamento de um profissional com uma escuta clínica qualificada e treino adequado para lidar com a situação”, finalizou a especialista

A advogada Flávia Elaine acrescenta que, após esse acolhimento, devem ser tomadas medidas que garantam a segurança da vítima. “Aí vêm o registro do boletim de ocorrência e a medida protetiva. Quando temos receio de como agir, basta fazer a denúncia. Só não podemos deixar que essas mulheres morram”, concluiu a presidente da CDDM.

Foto: Arthuro Paganini – SSP

 

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