Desde o século XIII, circulam pelo mundo variações do chamado mito da Cocanha, terra de fartura infindável. Seja em poemas franceses medievais, em textos holandeses da época do renascimento ou, mais recentemente, na brasileiríssima história de São Saruê, alguns elementos, como nos lembra o historiador Hilário Franco Júnior, permanecem os mesmos: comida, bebida e sexo à vontade, sem a necessidade de trabalho. Em algumas versões da história, aliás, o trabalho seria passível de punição. No que diz respeito ao governo, alguns dos textos apresentam essa terra fantástica como não tendo nenhum. Outras mostram uma versão monárquica da Cocanha, mas o soberano, muitas vezes chamado Panigon, está longe de ser uma figura autoritária. No mais das vezes, aparece, como seus súditos,entregue aos prazeres da boa mesa, e é retratado, em muitas histórias, montado em um cavalo que defeca ouro.

A frequência com que esses relatos foram recauchutados ao longo da história tem explicação relativamente simples: trata-se de uma expressão da necessidade de alívio, por parte da população mais carente, de certas necessidades elementares, além do desejo por conforto e fartura que independam da labuta brutal a que boa parte da população sempre foi submetida. Não à toa, como também nos lembra Franco Júnior, autores modernos mais alinhados a certa elite da época trataram de parodiar e condenar relatos sobre a Cocanha, motivados, talvez, por seu potencial subversivo. É o que se vê, por exemplo, no Decamerão de Bocaccio.

A partir do século XVI, como se sabe, as histórias sobre a Cocanha passaram a ter concorrência, na forma das (hoje) chamadas utopias modernas. A mais conhecida delas, que figura em obra publicada por Thomas Morus em 1516, relata uma sociedade bastante frugal e bastante estruturada, na qual o governo organizaria toda a estrutura social, inclusive o trabalho, e supriria todas as necessidades. Todos seriam ensinados, desde

cedo, a priorizar o bem comum. Outro texto comumente visto como utópico é a Nova Atlântida, de Francis Bacon, que retrata uma sociedade pautada pela estrutura bastante estrita e pela preocupação com o progresso da ciência. As utopias modernas se caracterizam não apenas como elogios a certo estilo de vida, mas são construídas de maneira tal que podem ser consideradas como críticas às sociedades de seu tempo e, também, como propostas de organizações sociais que os autores considerariam melhores. Não por acaso, a modernidade foi, também, um período em que surgiram grandes teorias do Estado. Autores como Hobbes e Locke, para ficar em dois exemplos, desenvolveram modelos bastante sistemáticos nos quais pretendiam estabelecer o que o Estado deve garantir, o que ele pode exigir dos súditos, como deve lidar com o poder etc. As teorias modernas do Estado, portanto, têm em comum com utopias como a de Morus a preocupação com o estabelecimento de modelos de estruturas sociais, algo que não se vê nos textos sobre a Cocanha e em suas variações.

O contraste, ao longo dos tempos, entre histórias sobre uma terra de fartura completa, de um lado, e utopias (ou projetos de Estado), de outro, pode ser atribuído à diferença entre a expressão de anseios populares e tentativas de reestruturação social. Ora, se esse contraste parece tão evidente, é que projetos utópicos e teorias do Estado sempre foram escritos do ponto de vista dos que não estavam à míngua. Solicitar àqueles que têm fome que sejam mais austeros e priorizem a comunidade talvez seja pedir demais. Do mesmo modo, propor uma resposta que passa por um modelo de Estado que destacam o lado dos poderosos, ou conceitos de propriedade que talvez façam mais sentido para uns do que para outros, é algo que jamais poderá encontrar eco junto à maioria.

Fica claro, então, que, se não podemos prescindir de um projeto de Estado (e, portanto, de um projeto de País), é preciso que ele seja pensado para garantir, no mínimo, condições mínimas para todos. Não se trata de fartura infinita, muito menos de fartura grátis, apenas da compreensão de algo elementar: estabilidade, disposição para um suposto progresso e senso de comunidade não combinam muito bem com barriga vazia, nem com falta de oportunidades. Se não formos capazes de estabelecer um projeto de País que leve em conta esse tipo de coisa e engendre uma ordem que atenda minimamente a todo o povo, não será de espantar que os aspirantes a cidadãos da Cocanha, em algum momento, fiquem cansados de esperar a fartura que nunca chega. Creio que você, leitor, pode calcular os resultados disso.

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