Casais, sociólogo e advogada discutem origem e configuração dos relacionamentos abertos nos dias de hoje
Em 1975, Milton Nascimento e Caetano Veloso compuseram uma canção que tornou-se uma espécie de hino do amor e dos relacionamentos românticos. Os versos de “Paula e Bebeto” pregam que “qualquer maneira de amor vale a pena”, fazendo ecoar a voz de muita gente que teve sua forma de amar silenciada e reprimida. E, em alguns casos, tais maneiras de amor não são sinônimo de exclusividade emocional.
Aos poucos, os relacionamentos abertos mostram sua face e reivindicam espaço em uma sociedade compulsoriamente monogâmica. Não que a possibilidade de se conectar com mais de uma pessoa estando em um relacionamento estável seja coisa nova, mas a desconstrução dos padrões relacionais ainda é um fenômeno recente. Com isso, as oportunidades de conhecer e manifestar outras formas de amar vem se expandindo.
Para quem está em um relacionamento aberto, a ideia de estar com outra pessoa além de seu parceiro não é, necessariamente, traição. E para chegar nesse nível de entendimento e reciprocidade, os requisitos principais são o respeito e a honestidade – algo que, em tese, não se diferencia em nada de um relacionamento convencional e monogâmico.
ABERTURA
Oliver McAdam nasceu na Inglaterra e conheceu sua companheira, Beatriz Campos, em 2005, quando ela tinha acabado de chegar por lá para passar quatro anos. Na época, ele estava iniciando a faculdade. Os dois começaram a namorar e passaram vários anos juntos, até que Beatriz precisou voltar para sua terra natal. Já formado e depois de um ano e meio separados, Oliver fez as malas e veio morar com Beatriz no Brasil. O casal mora em Aracaju. Ele dá aulas de Inglês, enquanto ela está para concluir o curso de Letras.
Segundo Oliver, a ideia de abrir o relacionamento surgiu já no início do namoro, por sugestão de Beatriz. “Foi algo muito estranho, fiquei até ofendido. Eu carregava comigo até então um moralismo conservador. Na época, eu estava estudando política e Marxismo. Nisso, me aprofundei na ideia da monogamia. Foi a primeira vez que comecei a pensar sobre o porquê dos padrões monogâmicos e patriarcais. Depois de um ano discutindo o assunto, decidimos abrir o relacionamento. Entendi que a monogamia funciona para oprimir a mulher”, relata.
Com a ajuda de Beatriz, Oliver começou a construir novos conceitos. “A sociedade considera ficar com outra pessoa como traição. Mas traição, na verdade, é quando você se compromete com algo e vai contra isso. A maior traição é não ser honesto. Mentir é o primeiro indício de traição em qualquer relacionamento, seja aberto ou monogâmico”, argumenta.
HISTÓRIA
Nem sempre, durante a história, a monogamia foi regra na sociedade ocidental. O professor e mestre em Sociologia Luige de Oliveira evoca os pensamentos do teórico alemão Friedrich Engels para explicar a questão. “É a partir do surgimento da propriedade privada e a descoberta da paternidade biológica que temos uma mudança de paradigma, colocando o homem e a questão da herança no centro do novo arranjo social”, diz.
Ainda de acordo com Luige, é também nesse momento que a visão sobre homens e mulheres nos relacionamentos afetivos ganha outro desenho. Enquanto a liberdade sexual da mulher é restringida ao marido e ao casamento, o homem mantém sua permissão social de se relacionar com outras parceiras. Os filhos gerados através desses relacionamentos fora do matrimônio, no entanto, não são mais reconhecidos como legítimos.
Para Oliver, a própria ideia de ciúmes está relacionada à questão da propriedade privada. “O ciúme é fruto do machismo e da ideia de posse. A gente transfere essas concepções de propriedade para as pessoas. Quando eu e Beatriz abrimos nosso relacionamento, não conseguimos nos libertar imediatamente das contradições e padrões que a sociedade nos impõe. Tivemos ciúmes, mas sempre fomos honestos e nos respeitamos. É uma batalha que você vence com o tempo”, considera.
ACORDO
N.M. conheceu seu namorado na universidade, em 2015. O namoro foi acontecendo sem marcos ou pedidos, até que, conversando, os dois optaram por um relacionamento fechado. A decisão de abrir o namoro veio no ano passado. “Nossos únicos acordos são não comentar um com o outro sobre o que ocorrer com outras pessoas e agir sempre pensando em preservar um ao outro de qualquer desconforto ou sofrimento”, afirma.
N.M. conta que muitas pessoas, ao saberem de seu relacionamento, reduzem a abertura à questão sexual. “É muito comum reduzirem nossa relação à ””safadeza”” e questionarem se realmente há sentimento. E é sempre por parte de pessoas que não nos conhecem juntos. Os que são mais próximos já chegaram a dizer que, se nosso relacionamento acabasse, perderiam a fé no amor”, relata.
Embora a decisão de abrir o relacionamento tenha ligação com a necessidade de conhecer outras pessoas, N.M. afirma que essa ideia não interfere no amor que ela e seu companheiro sentem um pelo outro. “Depois que abrimos o relacionamento, o desejo por outras pessoas, para mim, diminuiu bastante. Era a pura e simples proibição o que mais me incomodava, a interferência na minha liberdade”, expõe.
PRESSÕES SOCIAIS
A pressão monogâmica se estende até mesmo para a legislação. No Brasil, a bigamia já chegou a ser considerada crime. Mas existe diferença entre o que é considerado bigamia e o que conhecemos por relacionamento aberto. A advogada, mestre em Direito e professora de Direito Civil Tatiane Goldhar esclarece a questão do ponto de vista jurídico.
A legislação penal diz que a bigamia se configura quando uma pessoa já casada casa-se novamente; ou quando alguém, não sendo casado, casa-se com alguém que já mantém um casamento e o faz de modo ciente. “Observa-se que o bem jurídico protegido é o princípio monogâmico e a instituição da família, a partir de valores cristãos consagrados em nossa cultura desde os tempos muito remotos”, explica.
“No caso dos relacionamentos abertos, temos um modelo que não é ainda protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro ou pelas tradições religiosas e culturais do nosso povo. Como tais formatos de relação não visam à constituição de família e sim o exercício do amor livre, entende-se, do ponto de vista jurídico, que não é possível o reconhecimento de uniões concomitantes, livres e fluidas, haja vista a necessidade de identificar, reconhecer e proteger as pessoas envolvidas nessas relações”, completa a jurista.
Na visão de Luige, os relacionamentos abertos não implicam na dissolução da ideia de família. “O padrão social de família monogâmica cunhado na tradição judaico-cristã e composto por pai, mãe e filhos passa a ser contestado, dando origem a diversas experiências de família que fogem a essa regra. A ideia de família, portanto, persiste; mas no mundo atual, a configuração da família tradicional já não se coloca mais como a única possibilidade de constituição de laços afetivos”, diz.
REALIDADE
Mesmo estando em um relacionamento aberto duradouro, Oliver reconhece que há dificuldades, e que elas nem sempre estão ligadas a ele e sua companheira. “Se saio com outra menina, temos que pensar para onde vamos. Por que se eu for com ela a um local que frequento geralmente com minha companheira, pode gerar desconforto com os garçons. E se encontro amigos nesse local, eles não querem sentar comigo e essa outra pessoa. É como se ela estivesse invadindo a relação, e é ela quem acaba sofrendo mais”, resume.
N.M. também reconhece as dificuldades diárias, mas afirma que, com maturidade e companheirismo, é possível supera-las. Mas alerta: “nosso relacionamento está mais forte, leve e saudável. Mas não significa que essa é a receita da felicidade. Pelo contrário, é muito comum que homens coajam mulheres a aceitar esse formato de relacionamento para que eles possam satisfazer suas vontades, ainda que a mulher esteja insatisfeita e infeliz. Antes de tudo, é preciso que seja uma vontade de ambas as partes”.